Inocêncio Calabote Culpado?
Esta pérola da História, é o relato dos acontecimentos que originaram a 1ª
Irradiação na Arbitragem. O outro foi Francisco Silva nos anos 80. Foi
retirada do EXPRESSO on Line, e inclui entrevista com INOCÊNCIO CALABOTE, o
àrbitro que marcou 3 penaltis, expulsou 3 jogadores e prolongou para lá dos
100 minutos o ultimo jogo de um campeonato decidido por diferença de
golos...
Em 1959, acusado de ter prolongado um jogo de futebol para que o Benfica
conquistasse o campeonato nacional de 1958-59, foi irradiado dos campos de
futebol por corrupção, mas quem viria a ganhar seria o FC Porto. Hoje, o
ex-árbitro algarvio Inocêncio Calabote continua a protestar a sua inocência.
«A bem da nação»
Era um domingo muito especial, o de 22 de Março de 1959, em termos de
futebol, quer-se dizer. O calendário era outro, e o Campeonato Nacional da I
Divisão da época 1958-59 vivia, nesse dia, a sua última jornada. E que
jornada! Benfica e Porto, empatados em pontos e nos jogos disputados entre
si, eram os únicos candidatos ao título. A separá-los, na corrida, apenas
uma diferença de quatro golos favorável aos «azuis e brancos» (78-22 do
Porto contra 71-19 do Benfica). Para se tornarem campeões, os «encarnados»
teriam de ganhar o último encontro por uma vantagem superior em quatro golos
àquela que os portistas conseguissem.
Sem directos televisivos, o país estava suspenso, depois do almoço
domingueiro, dos relatos que a Rádio, ainda sem transmissões em cadeia,
assegurava, em simultâneo nessa tarde, dos dois encontros. O Benfica recebia
na Luz, com casa cheia, o Desportivo da CUF, do Barreiro. O Porto, pela sua
parte, enfrentava o Torreense, em Torres Vedras, a transbordar. E a
expectativa era tanto maior quanto se sabia que CUF e Torreense, em riscos
de descerem de divisão (como acabariam por descer, face às derrotas que
sofreram nesse dia), iriam fazer a vida cara aos adversários. Os jogadores
destes dois clubes tinham mesmo prémios especiais (e secretos) para o caso
de conseguirem contrariar as naturais aspirações de vitória dos dois
grandes.
Inocêncio João Teixeira Calabote, árbitro da Comissão Distrital de Évora,
foi escolhido para apitar o Benfica-CUF. Considerado e premiado pela
Comissão Central de Árbitros, «pelo Desporto e a Bem da Nação», como o
melhor da época 1952-53, era indicado à FIFA como árbitro internacional na
época seguinte (distinção que voltaria a merecer em 1956-57) e apontado um
ano depois pelo próprio presidente da Comissão Central, na altura Filipe
Gameiro Pereira, como «do melhor que tem passado pelo sector da arbitragem»,
numa entrevista concedida ao jornal «A Bola» em 26 de Março de 1955. E havia
razões de sobra para escolher um juiz com o perfil de «honrado» e de
«independente» como o de Inocêncio Calabote para arbitrar esse Benfica-CUF
de 1959. É que ao longo da época, em particular durante a segunda volta, os
«encarnados» tinham acumulado múltiplas razões de queixa contra as
autoridades responsáveis pelos destinos do futebol.
A primeira grande injustiça de que o clube da Luz se sentiu vítima, nessa
época, girou em torno de um castigo de cinco jogos de suspensão aplicado a
Chino, o influente extremo-direito da equipa. Quando a pena estava
praticamente cumprida, o castigo foi reduzido para um jogo apenas!
Jornadas mais tarde, depois de um protesto do Belenenses referente a um jogo
com o Benfica ter sido aceite pelas autoridades federativas (primeiro por
ter sido negado aos homens da cruz de Cristo um golo directo conseguido na
marcação de um canto e depois pela barreira defensiva dos encarnados se ter
alegadamente mexido antes de Matateu, a estrela da equipa, apontar um golo
de livre), o clube da Luz viu o jogo de repetição ser marcado para a
quinta-feira anterior à partida decisiva com a CUF.
Por fim, o encontro que os «encarnados» disputaram em Alvalade, na penúltima
jornada, no domingo anterior, ficara marcado por cenas de autêntico
pugilato, que fizeram com que a equipa terminasse a partida com apenas nove
jogadores, por expulsão de Ângelo e lesão de Artur.
Minutos dramáticos
O Estádio da Luz estava à cunha. A equipa de arbitragem - Inocêncio Calabote
foi auxiliado por Madeira da Rocha e por Manuel Fortunato - foi a primeira a
entrar em campo, uns cinco minutos antes da hora prevista para o início da
partida, seguida, nos minutos seguintes, pela turma do Barreiro. Os
responsáveis «encarnados» admitem que atrasaram o mais possível a entrada da
sua equipa no relvado, de forma a poderem beneficiar do conhecimento do
resultado em Torres Vedras. «Faltariam aproximadamente dois minutos para as
quinze horas quando entrou a equipa do Benfica», declararia, mais tarde,
Manuel Fortunato, um dos fiscais de linha, no âmbito de um processo
disciplinar que viria a custar a irradiação de Inocêncio Calabote, mais de
20 anos depois dos «bons serviços» que, unanimemente, prestou à arbitragem.
«Havia numerosos fotógrafos dentro do campo para fotografar a equipa. Isto
deu lugar a uma certa demora, tendo o árbitro procurado que os fotógrafos
abandonassem o campo. Isto fez com que o jogo principiasse uns três minutos,
aproximadamente, depois das quinze horas», adiantou o auxiliar.
Apesar do esforço dos homens do Barreiro, a primeira parte correu de feição
para as aspirações do Benfica, que chegou ao intervalo a vencer por 4-0. Aos
58 minutos de jogo, o cufista Quaresma reduziu para 5-1, colocando assim o
FC do Porto em vantagem. Mas o Benfica, em tarde inspirada, não tardaria a
fazer os 6-1.
Os últimos minutos, segundo relata a Imprensa da época, foram «dramáticos»
nos dois campos. Primeiro, na Luz, Mendes fazia os 7-1, dando o título ao
Benfica. Depois, em Torres, Noé marcava o segundo golo do Porto, empatando
de novo a contenda entre os dois grandes. E, a vinte segundos do final desta
partida, Teixeira elevava a marca para 3-0, colocando a faixa de campeão ao
peito dos «azuis e brancos».
Na Luz, os «encarnados» deram tudo por tudo ao longo dos seis derradeiros
minutos da partida (dez, com os descontos) mas não conseguiram voltar a
marcar. Por um só golo (81-22 contra 78-20), o FC do Porto, na altura
treinado por Bela Guttmann sagrava-se campeão nacional.
«Na manhã seguinte, em Évora, preenchi o relatório do jogo, que mandei para
a Comissão. Tinha assinalado três penaltis e expulsado três jogadores da
CUF. Creio que não houve mais nada de especial a registar.»
Isto pensava ele, na sua inocência de Inocêncio puro, longe ainda de saber,
como viria a apurar mais tarde, quantas coincidências nefastas se não podem
cruzar no caminho dos inocentes. «Em 58-59, a presidência da Comissão
Central de Árbitros, por força da rotatividade do cargo ou de qualquer coisa
no género, foi parar às mãos do Belenenses, então um dos quatro grandes, na
pessoa do dr. Coelho da Fonseca. O presidente anterior veio a Évora
avisar-me um belo dia: 'Você ponha-se a pau, que a Comissão que entrou vem
com intenções de o irradiar', disse-me ele, o Gameiro Pereira. Queriam
vingar-se.
«Logo de seguida, depois do tal Benfica-CUF, alegando má-fé minha no
preenchimento do relatório do jogo - que teria começado não sei quantos
minutos depois da hora, que teria tido um intervalo maior que o devido e um
prolongamento excessivo também -, o dr. Coelho da Fonseca abriu-me um
inquérito e não descansou enquanto não conseguiu que me fosse aplicada a
pena de irradiação da arbitragem. Ao fim de 22 anos de bons e leais
serviços, conseguiram pôr-me na rua alegando um pretenso erro meu de
cronometragem. E se escrevi no relatório que prolonguei a partida durante
quatro ou cinco minutos foi porque entendi que o devia ter feito e porque
foi esse o tempo que o meu relógio realmente marcou. E qual é o relógio que
conta?»
Depois de mais de 20 anos dedicados à causa da arbitragem, Inocêncio
Calabote viu-se irradiado por um pretenso erro de meia dúzia de minutos.
«Não, nunca ninguém me acusou de suborno, de comprado ou de coisa no género,
que nunca ninguém encontrou matéria para tal. Aplicaram-me a pena máxima só
porque o meu relógio, pretensamente, não tinha o rigor de um cronómetro
acima de qualquer suspeita.»
E repete-se inocente, Inocêncio João Teixeira Calabote. Sem esperança nos
homens, até que o esquecimento o liberte.
AINDA hoje, quase 40 anos depois dos acontecimentos que viriam a marcar, de
forma tão dramática, a sua vida, Inocêncio Calabote experimenta, mesmo sem
querer, sentimentos contraditórios em relação ao que então se passou: por um
lado, gostaria de poder esquecer, de ter artes para varrer tudo da memória e
deixar a cabeça limpa, como uma casa arrumada, como se nada, alguma vez,
tivesse realmente sucedido; por outro, a «injustiça» que lhe fizeram foi tão
grande, tão violenta que o próprio corpo ainda agora se lhe arrepia todo
sempre que, quando menos o espera, o fluir do sangue lhe traz de volta ao
coração o sabor amargo do desamor dos homens.
Nunca mais fui a um estádio, não sou capaz. Gosto de ver o futebol na
televisão. Mas, depois, vou-me deitar, e a cabeça não pára, só quando
consigo adormecer.»
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